Nas
páginas deste livro procuramos traçar com exatidão a síntese histórica da Casa
Ramos Pinto, uma empresa de referência no mundo dos vinhos do Porto e do Douro
nascida no século XIX, no período da filoxera, que tanto afetou as vinhas de
Portugal e da Europa do seu tempo.
Fundada
em 1880, precisamente no ano em que o combate contra a praga que atingia as
videiras durienses se torna obrigatório pelo decreto de 22 de junho, coincide o
seu desenvolvimento com o boom das
exportações vinícolas do país, que aumenta 55% entre 1880-84 e 146% entre
1885-89, com boas colheitas em 1884-85, quando as exportações vinícolas
passaram a representar mais de metade do valor do comércio externo nacional e o
Vinho do Porto cerca de metade das exportações vinícolas1.
Face
ao decréscimo das exportações que se acentua na década seguinte, procurou novos
mercados e de entre todos elege o Brasil como o principal destino dos seus
produtos, que lhe retribui o esforço passando a incorporar o gosto pelos seus
vinhos nos hábitos quotidianos das famílias nas principais cidades2.
Adriano Ramos Pinto agradece ao Rio de Janeiro em 1906 com a oferta de uma
fonte monumental esculpida por um artista francês3.
Ocupando
ao longo dos tempos diversas instalações no Centro Histórico de Gaia, em 1908
adquire a antiga Casa do Pátio, na marginal do Rio Douro, junto aos antigos
estaleiros navais, um imponente edifício que, após notáveis obras de adaptação
se transforma no palácio do Vinho do Porto, como passa a ser designado devido à
sua decoração interna, onde as obras de Arte sobre temas vinícolas coabitam com
os escritórios e os gabinetes da direção.
Já
então a empresa era suficientemente conhecida pela excepcional qualidade dos seus
produtos e também do seu acondicionamento, rotulagem e publicidade, procurando
o seu fundador em Portugal e pela Europa fora os melhores artistas e as
melhores oficinas para os executarem4.
Em
1896 Adriano associa à administração seu irmão António, que passa a ser o
gestor atento e incansável, ficando o primeiro com a parte criativa, cuja
audácia comercial prosseguirá mesmo após o desaparecimento do fundador em 1927.
Não
foi possível aos autores separarem a biografia de Adriano da história da firma
por ele criada. Estamos perante um caso em que a empresa foi a vida do seu
criador, na qual pôs todo o seu saber, a sua sensibilidade artística, a sua
grande capacidade de produtor vinícola, a sua mente inovadora nas áreas do marketing e da publicidade, as suas
qualidades humanas muito para além do saldo imediato do ano económico, criando
uma aura que não é apenas uma lembrança histórica, mas que persiste porque à
solidez da mensagem se tem adicionado a permanente inovação, num propósito que
poderia ser sintetizado no conservar o que é eterno e renovar o que é efémero.
A
vida íntima e familiar de Adriano quase que se apaga perante a construção dessa
família mais alargada que são os seus agentes, ainda que distantes, os seus
colaboradores diretos, os vendedores, os seus capatazes, os seus trabalhadores
de armazém, os clientes e os consumidores. Para todos cria, a partir de uma
realidade bem concreta, um mundo ideal de graça e beleza, com Arte, Literatura,
Música e excelente convivialidade em torno do seu vinho, cosmopolita,
universalizante, fraterno.
O
mundo local era pequeno o opresso para Adriano que, por isso, viaja até Paris,
até ao Brasil, até à Europa do norte, em busca da imagem, da frase, da sensação
de felicidade que pudesse distribuir dentro de uma garrafa com a sua
assinatura.
Contrapondo
um pouco a esta mundividência, a partir da grande fase de afirmação da firma, a
presença de seu irmão António, com uma vida familiar e social mais estável,
contribuiu para a consolidação do devaneio comercial, dando-lhe a solidez que
lhe permitiu ultrapassar os solavancos das épocas e, através dos seus
descendentes, continuar a obra de seu irmão até aos dias de hoje, com todas as
brilhantes adaptações que os tempos foram sugerindo.
A
empresa atravessou ao longo dos tempos as grandes alterações sociais,
económicas e políticas dos últimos cento e trinta anos: a implantação da
República no Brasil (1889) e em Portugal (1910); a Grande Guerra de 1914-1918; o
prohibicionismo no Brasil, que então
procurava seguir o abolicionismo que se passava nos Estados Unidos da América; o
crash da Bolsa de Nova Iorque de
1929; a Segunda Guerra Mundial de 1939-1945; a diminuição drástica de
exportações para o Brasil; o golpe militar de 25 de abril de 1974 em Portugal e
encontra-se agora enfrentando com sucesso a recente recessão mundial, como
empresa do grupo Roederer, nascido na Champagne em França e atualmente também
com vinhos em Bordéus e na Provença, e ainda com produção vinícola na
Califórnia (EUA), além de Portugal.
O
segredo do sucesso desta empresa, que procuramos desvendar neste livro, deve-se
à procura incessante da qualidade dos seus vinhos, juntando com segurança e
sabedoria a tradição e a inovação, conquistando assim a fidelização de gerações
de consumidores e a adesão das gerações mais novas.
Como
se poderá constatar nestas páginas, a Casa Adriano Ramos Pinto sempre conciliou
a sua produção agrícola e comercial com as Artes, a Literatura, a Filantropia,
as inovações tecnológicas, a História e a Arqueologia. No primeiro caso
contratou artistas, promoveu concursos, patrocinou estátuas, encomendou
músicas, editou livros tão famosos como Os
Lusíadas de Camões ou D. Quixote
de Cervantes. Mas também se preocupou com o bem estar dos seus empregados e das
populações carenciadas que socorreu com donativos e outras ações. Ao longo dos
tempos aliou às mais rigorosas práticas de confeção dos seus vinhos as mais
sofisticadas análises laboratoriais e apoiou estudos de Biotecnologia e
Vitivinicultura, sendo sócia fundadora da Associação para o Desenvolvimento da
Viticultura Duriense (ADVID).
Em
1974 adquiriu a Quinta da Ervamoira no Vale do Côa, promovendo aí a inovação da
plantação sistemática de vinhas “ao alto” e a separação rigorosa por castas
antes iniciada na sua Quinta do Bom Retiro. Mas também aí promoveu escavações
arqueológicas desde 1985, que foram chamando a atenção para a importância dos
vestígios do passado na região, então ameaçada pela construção de uma barragem,
a que a descoberta das gravuras rupestres em 1994, e a sua classificação como
Património Cultural da Humanidade em 1998, vieram por fim. Desde novembro de
1997 que a Ramos Pinto tem aberto ao público nesta quinta o seu Museu de Sítio
de Ervamoira, que elucida o visitante sobre a presença humana na região, a
evolução da paisagem e o povoamento no período romano e medieval, para além da
história da Casa desde a sua fundação até às suas mais recentes produções,
tornando-se assim este complexo agro-turístico uma mais valia para a região
onde hoje pontifica o Museu do Côa, acompanhado de outros monumentos e sítios
musealizados numa região rica em vinhos e em História. E esta é uma
outra característica da Casa Ramos Pinto: desde muito cedo e ao longo dos anos
sempre entendeu que os vinhos portugueses e, em especial os do Porto e do
Douro, transportavam consigo a memória de gerações que atravessaram os séculos
e se aliaram com outros povos que lhes reconheciam o mérito de produto
internacional. Essa saga merece ser contada e preservada e para tal conservou o
seu espólio documental, criando o Arquivo Histórico Adriano Ramos Pinto
(A.H.A.R.P.) localizado na sede da empresa em Vila Nova de Gaia, o
qual tem vindo a ser tratado, catalogado e disponibilizado, dando origem a
diversos trabalhos de investigação e divulgação nas mais diversas áreas que se
centram em volta do universo dos seus vinhos5. Esta situação é
absolutamente excecional no mundo dos vinhos do Porto e do Douro no que diz
respeito às empresas privadas que os preparam e comercializam sediadas em Vila Nova de Gaia6.
Os
estudos sobre a História Empresarial são relativamente recentes, pois apenas
começaram a ser academicamente considerados a partir dos anos sessenta do
século passado, sobretudo nos Estados Unidos e em Inglaterra7 e,
entre nós, a partir dos anos oitenta, se bem que, muitos deles ainda diluídos
na História Económica. Mas desde os anos vinte que a Casa Ramos Pinto publica
livros sobre a história do seu sucesso e sobre as características peculiares do
seu fundador conforme se poderá comprovar pela bibliografia específica que
apresentamos no final do volume8.
Foi
assim esta empresa uma das primeiras a
«… utilizar o
seu passado com fins publicitários. A longevidade, ou a capacidade de
sobrevivência, é considerada como um indicador de excelência no mundo
empresarial, e daí o interesse das empresas em promover a redação e publicação
de histórias oficiais ou encomendadas, geralmente coincidindo com efemérides ou
aniversários assinalados»9.
Foi
o que a firma fez em 1980, assinalando o seu centenário com a edição de um
livro sobre a sua arte publicitária da autoria do conhecido historiador da
Arte, Professor Doutor José Augusto França, o qual conta já com várias edições10.
Mas fora desses eventos, a firma também entende que
«o
desenvolvimento experimentado pela História empresarial nos dois últimos
decénios e a sua crescente influência em outros ramos do conhecimento
científico parecem indicar que a velha relação de subordinação – de uma
disciplina de segundo plano como a História empresarial e outra de primeiro
plano como a Teoria económica – estão a dar lugar a outra relação de igualdade
e colaboração entre matérias autónomas e de idêntica importância…»11.
Os
autores do presente livro estão bem conscientes que o Arquivo Histórico Adriano
Ramos Pinto é um daqueles que
«…conservam
documentos que se têm revelado essenciais para o conhecimento da História, não
apenas da História da economia mas também da política, sociedade, arte, técnica
e muitos outros assuntos. É difícil assinalar quais deles são os mais
interessantes do ponto de vista histórico, pois o mesmo documento pode ser útil
para investigações muito diferentes…. Para a história das empresas nada pode
substituir a informação que proporciona o seu próprio arquivo»12.
Por
todas estas razões ele foi a principal fonte para a presente narrativa que,
longe de esgotar as suas potencialidades, apenas dá delas o essencial sobre a
história da firma considerando a investigação já realizada, e abrindo a porta a
muitas outras elaborações futuras. Nas páginas que se seguem procuramos aliar o
rigor da informação à fluidez da prosa destinada a todo o tipo de público,
desejando que uns a leiam como um romance, embora não ficcional, e outros
talvez como um livro erudito e ponto de partida para estudos complementares.
Para estes arrumamos as citações e notas no final do livro por capítulos, para
não atrapalharem a leitura aos primeiros e estarem à mão para os segundos, sem
pretender de modo algum hierarquizar os tipos e grupos de leitores.
Para
todos selecionamos a iconografia com profusão, a inédita e a indispensável,
esta última tida como a já clássica griffe
da Casa Ramos Pinto, sempre atual e sempre atraente. Acreditamos que todos os
nossos leitores estarão de acordo que a esta empresa se aplica com infinita
propriedade o título do livro El vino,
Arte que se puede beber13.
Se
nos é permitida uma recomendação final, folheie-se este livro demoradamente,
várias vezes e de tempos a tempos, sempre acompanhados por vinhos Ramos Pinto,
tentando descobrir nele a causa do sucesso que juntou há mais de cento e vinte
anos os vinhos do Porto e do Douro com a Arte para criarem momentos de rara
felicidade neste mundo.
Graça Nicolau de
Almeida
J. A. Gonçalves Guimarães
Notas
1 Para
estes dados seguimos Martins, 1990, p. 349 e seguintes.
2 Penhaflor,
[1926], p. 45; Ferreira, 2000.
3 Cf.
Correia, 2000.
4 Cf.
França, 1980.
5 Sobre
o arquivo ver Almeida, 1997 e Caracterização… 2000, pp. 41-150.
6 Sobre
a história da firma, ou já produzida a partir do seu património, ver no final a
Bibliografia da Casa Ramos Pinto.
Das empresas de vinhos atualmente
existentes, apenas duas disponibilizam em condições aceitáveis os seus arquivos
aos investigadores, a Casa Ferreira (Grupo Sogrape) e a Real Companhia Vinícola
do Norte de Portugal, para além do Instituto do Vinho do Porto; cf. Martins,
2000, pp. 217-238.
7 Cf. Historia Empresarial …, 2003.
8 A
primeira obra geral sobre a história da firma aparece por volta de 1926, quando
ía a caminho de meio século de existência, da autoria de Penhaflor, [1926],
cremos que um pseudónimo, talvez do escritor João Grave; a mais recente deve-se
a Janneau, 2002, publicada a propósito dos seus 120 anos.
9 Santiago
López & Valdaliso, 2003, p. 42, tradução.
10 Ver
supra Nota 4.
11 Santiago
López & Valdaliso, 2003, p. 48, tradução.
12 Tortella,
2003, pp. 150/151, tradução.
13 Sandi de
Rincón, 2001.